domingo, 15 de setembro de 2013

Contos da Raposa ~ Dezesseis




O cheiro acre de urina e fezes pairava no ar como se nada mais existisse naquele lugar. Atada a uma camisa de força, naquele cômodo acolchoado apodrecido, que não chegava a dois metros quadrados, a moça parecia um rascunho de um ser humano. Seus cabelos sujos caiam sobre os olhos e impediam uma visão adequada de seu rosto, mas a verdade era que nada naquele lugar poderia receber o adjetivo "adequado". A bem da verdade, não havia ratos caminhando pelo chão, mas haviam outros animais peçonhentos. Vermes, baratas, lacraias... A impressão era que não havia quem olhasse por aquela jovem.

Impressão errada. A porta se abriu, deixando uma luminosidade fraca, porém suficiente para agredir os olhos dela, entrar. Dois homens fortes, com o rosto coberto por máscaras médicas, a agarraram pelos braços e a arrastaram para fora. Não houve qualquer resistência da parte da menina, que não devia contar mais do que dezesseis anos. Na verdade, ela aparentava um estado catatônico. Como se não fizesse conta das coisas que aconteciam ao seu redor.



Os homens a arrastaram por um longo corredor, onde portas de ferro com pequenos gradis no cimo, tampados por um vidro blindado, se acumulavam uma ao lado da outra. Vozes lamentosas gritavam por socorro, outras gritavam coisas sem sentido, outras apenas gritavam e choravam. Os carregadores não pareciam sentir-se tocados por aqueles lamentos, estavam totalmente insensíveis à situação deplorável de todo o ambiente ao redor.

Ao fim do corredor, cruzaram uma porta um pouco mais limpa e apresentável. Uma mesa separava duas cadeiras, sendo que uma estava ocupada, e um vidro espelhado estava no lado oposto da porta. Forçaram a jovem a sentar-se na cadeira vazia e deixaram o aposento. À frente dela, estava um homem. Era magro demais, com a pele praticamente grudada aos ossos. Ele pousou as mãos apoiadas sobre a mesa, juntando as pontas dos dedos e olhando para a moça com crescente interesse.

- Você realmente me dá muito trabalho, Angela...

Ela não demonstrou ter ouvido. Não demonstrava nem sequer ter consciência de onde estava. Parecia um disparate imenso acreditar que alguém na condição dela fosse capaz de dar trabalho a alguém, ainda mais em um lugar como aquele. O homem batia os dedos uns contra os outros, ainda encarando a moça.

- O que devo fazer com você, minha cara...? Minhas opções estão se esgotando...

A resposta foi um novo silêncio. Ela olhava apenas para o próprio colo, apática. Apenas o fato de se mexer quando respirava denunciava que estava viva, ou algo próximo daquilo. Se ela ouvia, se ela estava naquele mundo, era impossível saber apenas olhando para ela. Mas seu interlocutor parecia acreditar que ela o escutava perfeitamente bem.

- Vamos lá, Angela, não me teste... Nós dois sabemos que você está perfeitamente lúcida... Ainda.

Cresceu um sorriso maldoso no rosto do homem, deformando ainda mais sua expressão. Seu nariz era exageradamente grande, quase não parecia muito humano. Tinha a aparência de alguém que tinha vivido muito além daquilo que se espera de uma pessoa normal. Mas Angela não respondia.

- Talvez você precise de algum incentivo para se manifestar... Onde está aquela linda boneca que eu tomei de você...?

Desta vez Angela demonstrou reação, mas apenas alguém extremamente atento, como era o caso, teria percebido. Ela mexeu-se de leve, extremamente imperceptível a olhos não treinados, na cadeira. O homem sorriu mais.

- Isso, eu tenho ela aqui...

Ele puxou de sob a mesa a tal boneca. Era uma peça de porcelana, realmente linda e delicada, de cabelos ruivos encaracolados caindo pelos ombros, lábios rubros e um lindo vestido vermelho vitoriano. Era uma boneca clássica, rara, claramente vinda de um bolso rico, capaz de pagar por ela.

- Aposto como adoraria ter ela de volta... Eu gostaria, se estivesse sozinho em uma cela...

Se o rosto dela estivesse visível ao homem, ele veria a face do ódio. Os olhos endurecidos da moça encaravam o próprio colo, enquanto seu coração aumentava as batidas exponencialmente, demonstrando uma fúria já há muito tempo contida. As unhas dela, há muito tempo dentro da camisa de força, estavam longas. E já tinham alguns dias desde que ela começara a arranhar o forro da camisa.

- Você quer a boneca, Angela...? Vai ter que conversar comigo...

Ela mantinha o movimento de arranhar a camisa de força, puindo lentamente o tecido. Demoraria ainda alguns dias até que conseguisse de fato se livrar das amarras, mas ela tinha aprendido a ser paciente naqueles anos todos. E agora, para poder voltar à sua cela e ficar em paz, ela teria que dar a ele o que ele queria.

- O que você quer, Nikolai...?

Sua voz saiu muito rouca e fraca, sinal de quem não usava as cordas vocais há bastante tempo. Mas ela permanecia olhando para o colo e não encarava o homem. Não podia arriscar olhar para ele e botar tudo a perder.

- Ah, progresso... Muito bom...

Nikolai se levantou, indo sentar-se na mesa, bem diante de Angela. Olhava para ela com a curiosidade típica das crianças e o interesse de um cientista ao encarar seu melhor experimento.

- Você sabe o que eu quero, Angela... Eu quero ouvir...

- Eu não vou falar... Nunca...

Ela falou entre dentes. A proximidade do homem causava repulsa quase física nela. Angela tremia de horror e asco de pensar que logo ele começaria a segunda parte de todas as sessões que tinha com ela. Por sua vez, Nikolai riu de sua resposta. Era exatamente a que ele esperava ouvir.

- Você me faz crer que gosta de vir aqui, Angela... Gosta dos nossos papinhos... Das nossas conversas... Das nossas... Brincadeiras...

Ele se aproximou mais. Seu nariz torto e feioso se aproximou do rosto dela, cheirando a pele suja da moça. Angela precisou de todo seu autocontrole para não se afastar nem fazer cara de nojo. Era quase impossível, ela sabia, mas se esforçou. Ele via seu esforço e aquilo o atiçava mais. A mão comprida e aracnídea dele tocou um dos seios de Angela por cima da camisa e o apertou.

- Seu problema é ter seios tão pequenos...

Ela sentiu o vômito chegar até o topo da garganta, mas ele voltou. Ela não vomitaria. Ela não demonstraria toda a repulsa que sentia por aquela criatura maligna, perversa que era Nikolai. Seus olhos foram até a boneca sobre a mesa. Um presente de seu desconhecido pai. Flashes de seu passado vieram à sua cabeça enquanto o homem abusava de seu corpo.

--Sua mãe, uma mulher linda de olhos verdes e sorriso amável, a pegava nos braços. Contava histórias para ela dormir e, com a boneca, falava do pai que a amava, mas não podia estar ali. Fazia panquecas pela manhã, cheias de calda de chocolate e cerejas--


--a mão de Nikolai foi para entre suas pernas. A calça que ela usava estava velha e puída e praticamente toda rasgada na altura da virilha. Ele a acariciou por sobre a intimidade—



--sua mãe trazia um enorme embrulho, dizendo que seu pai tinha pedido que Papai Noel entregasse para ela. Era uma casa de bonecas linda, com vários andares, cheia de detalhes. Era tão grande que era praticamente maior que a pequena Angela, que dava saltos de alegria--

--os dedos longos do homem invadiam a intimidade de Angela e ele gemia medonhamente, sentindo um prazer asqueroso naquele abuso--

--era noite, Angela estava brincando com sua boneca, sentada no chão da sala, enquanto sua mãe lia um livro. Um som estranho veio dos fundos da casa, alertando a ambas. Assustada, a mãe pede para a filha para que se esconda sob a mesa da sala, se levantando para ver o que era. Angela obedece, agarrada à boneca de porcelana. Um baque seco é ouvido e um som de tapas e murros. Duas figuras encapuzadas entraram na casa e começaram a agredir a mãe de Angela que, apavorada, assiste a tudo, em total silêncio. Não conseguia emitir som algum enquanto via aquelas pessoas espancarem sua mãe, que, por sua vez, não falava uma única palavra sobre o fato da filha estar ali, com medo de que também ela fosse vitimada. A sessão durou por vários minutos, enquanto a mãe de Angela implorava por misericórdia e perguntava o motivo daquela violência sem sentido. Ela estava caída no chão, de quatro e cuspiu uma quantidade grande de sangue no carpete. Seus olhos encontraram o da filha, espremida sob a mesa de centro, que não deixava ver que ela estava ali. Por fim, uma das pessoas enfiou uma faca nas costelas da mulher, e a outra enfiou uma bala em sua cabeça. A mãe de Angela, mesmo morta, permanecia de olhos abertos, voltados para a filha. As pessoas saíram, sem procurar saber se existia mais alguém na casa. Angela segurava a boneca e encarava a mãe morta, sem falar nada. Sem deixar cair uma lágrima--

--ele tinha tirado a mão de dentro dela, mas mantinha o rosto próximo, cheirando a pele de Angela. Ela olhou para ele. As lembranças daquele dia trouxeram alguma coisa a mais. A raiva de ter visto sua mãe ser morta por motivo nenhum deu novo ânimo às suas unhas. Ela rasgara o pano e também sua própria pele, na altura da barriga.

- Foi bom pra você, doutor...?

Ela não soube que tipo de força a moveu naquele momento. Avançou contra Nikolai, mordendo seu pescoço com uma ânsia sem tamanho ou descrição, até sentir que perfurara sua carne e suas veias. Tamanha a surpresa de Nikolai que ele não conseguiu gritar por socorro. Ela tornou a atacá-lo, da mesma forma, retalhando o pescoço do homem com os dentes com tamanha fúria que logo ele estava inconsciente.

Os homens que a trouxeram até ali invadiram o aposento e a agarraram pelos braços com força, mas aquilo só ajudou a rasgar mais a camisa de força, fazendo com que ela se rompesse.

Ela se debateu com tamanha fúria que não foi difícil se livrar da camisa de força. A blusa que usava por baixo tinha sido branca algum dia, mas estava amarelada de suor e sujeira, além de rasgada. Os homens se viram segurando a camisa de força vazia, enquanto Angela corria pelo corredor, descalça. Os demais internos, como se pudessem saber o que estava acontecendo do lado de fora, começaram a gritar mais alto.

Com o rosto ensanguentado e com uma gana imensa de poder sair dali, ela correu até encontrar uma janela sem grades. Estavam no terceiro andar. Ela arremessou uma cadeira contra a janela e, sem se importar com a altura de onde saltava, pulou, caindo sobre os galhos das árvores que cercavam o edifício. Ao atingir o chão, ainda um bocado tonta, ela precipitou-se pelo bosque que cercava a edificação.

Avançou quanto seu corpo permitiu, entre árvores fechadas, cipós e o chão irregular, cheio de pedras que cortavam seus pés. Até que, vencida pelo extremo cansaço e pela queda na adrenalina, ela caiu no chão, inconsciente.


~*~*~


Ela acordou sentindo as lambidas de um cachorro em seu rosto. Demorou alguns instantes para perceber que não estava mais naquela instituição maldita e que estava viva. Sentou-se no chão. Parecia estar na beira de uma estrada e o sol estava nascendo. Olhou para o cachorro, que se afastou quando ela se mexeu. Ele estava lambendo o sangue seco de seu rosto.

Não sentia dor, e era estranho aquilo. Deveria estar toda dolorida pela corrida, pelo pulo, pela tensão. Olhou para os próprios pés e viu que todas as feridas e cortes ainda estavam ali, coagulados, mas estavam. Apertou o pé, com curiosidade. Ainda não sentia dor. Ela riu. E riu mais e mais, descontrolada. O próprio cachorro se assustou com a risada enlouquecida da jovem, fugindo de perto dela, ganindo.

Angela riu-se muito tempo antes de se animar a levantar e procurar por ajuda, ou por algum lugar para ir. Começou a andar pela beira da estrada, sem se preocupar com eventuais carros que passavam por ela - eles também não paravam ou demonstravam interesse.

Enquanto ela andava sem rumo, uma camionete veio parando ao lado dela.

- Você está uma bagunça, moça...

Angela olhou para o motorista. Era um homem novo, bem apessoado. Estava de óculos escuros e ostentava anéis grossos em vários dos dedos.

- Devia ter me visto ontem à noite...

Ela não parou de andar, continuando seu caminho. O homem continuou a andar com a camionete ao lado dela.

- Está assim por opção, promessa, ou quer alguma ajuda?

Ela parou de andar, olhando para ele.

- Eu estou assim porque matei o diabo, fugi do inferno e agora estou na estrada de volta pra vida.

De certa forma era a mais pura verdade. Afinal de contas, para ela, Nikolai era o mais próximo do diabo que ela já havia conhecido e ela o matou com os dentes. Fugiu de um hospício tão assombroso, que era o avatar do inferno na Terra. E agora andava por uma estrada, sem rumo, mas mais viva do que jamais se sentiu em toda a existência. O homem riu, buscando um cigarro no bolso da camisa. Angela não sabia, mas ele sabia de tudo o que ela tinha passado. Conhecia a instituição em que ela estava e observara tudo através de monitores. O hospício era um laboratório. O laboratório dele.

- Você está precisando de um banho, menina... Entra, eu não vou te machucar.

Acendeu o cigarro e tirou os óculos, olhando para ela. Ele tinha olhos profundamente castanhos e bonitos, assim como seu sorriso inspirava confiança. Angela o encarou por vários instantes antes de tomar uma decisão. Por fim deu um sorriso de lado.

- Ok...

Ela abriu a porta da camionete e pôs o cinto de segurança. O homem acelerou o veículo e sumiu pela estrada.

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